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À luz de Antero

 

Não fossem os distúrbios da natureza que devastam vidas e destroem fazendas, e pouco ou nada nos surpreenderia na atualidade informativa.

Da crise, sobram-nos palavras e, sobretudo, consequências terríveis que consomem os débeis orçamentos de fracos e remediados, resguardando os ricos nos seus cada vez maiores potentados.

Neste ambiente de insatisfação social em que o dogma da austeridade é repetido na catequese diária da salvação económica, não se vislumbram perigosos adversários.

O povo sabe e sente que quem está a ganhar a batalha é o dinheiro e o capital, e contra ele os portugueses, na sua maioria, não tem armas bastantes. É uma luta desigual, iníqua, que atinge os crucificados pelo aumento de impostos e pela diminuição de salários, os desempregados, esfomeados, doentes, os sem-casa e os idosos – todos eles considerados peso morto do Estado.

Salva-se o capital sem rosto e sem pátria e sacrifica-se, na praça pública e no pelourinho da vida, o povo.

A independência nacional que cimenta a unidade e a identidade cultural, e afirma a nossa soberania foi, conscientemente, oferecida de bandeja aos credores. Perante eles os governantes curvam-se subservientes e submissos, embora, publicamente, dêem a imagem de poder e autoridade fortes que, efetivamente, não têm.

Ainda agora, o FMI recomendou mais um “abaixamento de salários para aumentar a produtividade”, como se do trabalho escravo resultasse maior produção e riqueza. Que dizem os governantes? Vamos a isso!...como já o fizeram nos últimos dois anos. E o que melhorou? NADA! Nunca vivemos tão mal!...

No início da crise, houve quem preconizou uma mudança de paradigma económico, face ao despesismo exagerado a que nos convidou a banca e os donos do capital. Julgava-se que o neoliberalismo seria regulado na sua gula desmedida de lucros, pondo em causa a soberania dos estados como acontece com Portugal. Essas ideias não tiveram vencimento e o que se instalou foi a mentalidade economicista do Estado que preconiza investimentos e despesas apenas no que der retorno. Daí os significativos cortes nos benefícios sociais: salários da função pública, reformas e pensões, subvenções a desempregados, serviços e gastos com a saúde, despesas com o ensino e educação, etc.

Esta lógica do custo/benefício, não deve aplicar-se ao Estado, sob pena de transformar direitos sociais em benefícios assistenciais, contrariando o princípio elementar de que “não deve dar-se como esmola o que é devido por justiça”.

Analisar investimentos públicos, apenas na perspetiva da sua rentabilidade é atentar contra direitos fundamentais como: o direito à vida, à saúde, à educação e ao trabalho, que regem os preceitos e normas de estados civilizados, ou integrantes de organismos internacionais onde a solidariedade e o desenvolvimento são contributos para a paz.

Nestes tempos, faz bem ler os clássicos da filosofia política, confrontando as suas ideias com as teorias e práticas reinantes.

Antero de Quental, na segunda metade do século XIX,  definia assim a democracia:       
É a igualdade social e económica, tendo por instrumento a liberdade política. É a partilha justa, entre os membros da sociedade, dos bens materiais, como garantia duma igual distribuição dos bens morais entre todos. É a ponderação das forças sociais feita pela lei e pelo pacto livre, em vez de ser feita pelo acaso cego, pela luta fratricida, pelo equilíbrio, a cada momento instável, da concorrência. É o trabalho considerado, definitivamente e realmente, a única base do estado. É a lei feita, enfim, por todos ao serviço de todos. É o povo chamado ao banquete olímpico da instrução, da prosperidade e da moralidade. 1.)

Ao fim de quase 40 anos de afirmação de liberdades, direitos e garantias, vir questionar o custo per capita de investimentos públicos feitos nos sectores de atividade produtiva ou social, é um ato discriminatório ofensivo da dignidade de toda a pessoa humana - razão única do Estado.

O que o povo pede – conclui Antero -  não é o ócio doirado, as pompas cortesãs, os deleites, as opulências: nada disso: o povo pede simplesmente o pão do corpo e do espírito em retribuição do seu suor; pede garantias para que o fruto do trabalho não seja absorvido pelos ociosos: pede agasalho e a instrução para os seus filhos e para si a liberdade de dispor da sua pessoa e do produto integral da sua atividade. Em duas palavras: o povo pede que o deixem ser homem. 2.)

Só espíritos lúcidos como o do filósofo açoriano podem visionar situações como as que vivemos, provocadas por oligarquias opressoras de povos indefesos.

A imparcialidade da História julgará um dia quem praticou a justiça e promoveu a iniquidade.

1.) Quental, Antero -  Política, Obras Completas, IV vol. Pag 129, 1994.

2.) Ibidem, pag 130.

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